Kill yr idols
Sobre Palestina, rostos e silêncios.
Procure no google sobre os israelenses sequestrados. Estão lá, face visível. Procure pelos judeus mortos: quase sempre vai aparecer uma foto de arquivo e não uma foto dos mortos. Procure uma lista de vítimas, uma lista de sequestrados: você consegue encontrar.
Procure no google sobre os palestinos sequestrados e enjaulados pelo exército de Israel, incluindo crianças. Não aparecerão imagens nem nomes. Procure a lista dos mortos na Palestina. A lista das milhares de crianças mortas. Quase não sabemos os nomes. Quase nunca sabemos a imagem.
30.000 parece ser só estatística.
Procure um rosto palestino.
Encontramos crianças em lençóis brancos, extraviadas até de um caixão.
Levinás, o filósofo judeu, dizia da importância do rosto. Da responsabilidade infinita diante de um rosto. Algo me diz que o rosto palestino não pode existir.
(às vezes existe, como a poeta Heba Abu Nada assassinada
Salma, filha do fotógrafo Hussein Jaber, assassinada pelo exército de Israel
Rania Abu Anza, que teve os filhos gêmeos assassinados depois de mais de 10 anos tentando engravidar)
Naquele lugar
Se não é uma mãe que tem que enterrar um filho
E um filho que tem que enterrar um pai
Ou um pai que tem que enterrar a mulher e o filho
Ou o filho que tem que enterrar pai mãe avô avó irmãos
Ou é a filha para quem não sobrou mais ninguém.
Uma geração de órfãos que não têm como voltar para casa.
Quando as bombas cessarem não haverá volta para casa porque não existe mais casa.
Aquela praça que viu os primeiros passos dos seus filhos? A bomba levou embora.
A escola em que aprendeu a ler? Foi mijada pelos tranques.
O hospital em que passou os últimos momentos do lado da sua mãe? Soldados israelenses tiraram uma selfie na frente dele depois de colocá-lo ao chão.
A editora de quem comprava livros? Foi queimada até que o fogo tomasse o céu.
Seus vizinhos foram embora e nunca mais vocês vão se encontrar
Aquela voz que cantava na rua, perto de sua casa, foi cortada
As favas enlatadas não serão mais compartilhadas.
Coreanos, durante o a ocupação e colonização japonesa afirmavam constantemente que para um povo existir era necessário também um território.
A colonização é, entre outras coisas, sempre uma usurpação de um território para um povo deixar de existir. Para um povo não ter mais rosto. Invadir, colonizar e negar o território palestino é, desde o início, um projeto de colonização e extermínio.
Enquanto boa parte do mundo colonizado lutou e conseguiu a independência depois da segunda guerra, na Ásia e África, principalmente, a Palestina continuou sendo encurralada, cada vez mais, em pequenas faixar de terra. Acabou se tornando o paradigma contemporâneo para qualquer um desses termos que se usa hoje em dia: necropolítica, biopolítica, etc.
Quando os países do norte deixaram de controlar boa parte do mundo e, depois de torturar e matar muitas pessoas, destruir infraestruturas, e outros tipos de aniquilação, acabaram perdendo e daí surgiu o pós-colonial.
Algumas vezes acredito que o pós-colonial é uma cronometragem história.
Ou será que o pós-colonial não se tornou uma nova forma de controle epistemológico que vem do norte para controlar o sul e as possibilidades de discurso?
Enquanto o norte fala do pós-colonial e publicamos seus livros, o mesmo norte continua não se importando a mínima para o que é aqui produzido. Continuamos objetos e reproduzimos o enlace. Muito mais fácil uma teórica pós-colonial francesa conseguir uma publicação em uma editora importante do que as incríveis professoras da UFSC que desde os anos 1980 discutem as questões a partir do sul.
Quando o pós-colonial pode ser perigoso? Como ele pode ser perigoso?
Respondo um pouco: quando a Palestina entra em pauta.
(não é uma novidade. Outras pessoas, incluindo Angela Davis, já entendiam isso).
Por ser ainda a colônia e o paradigma, a Palestina não pode existir. Ela é o exemplo ao vivo da práxis da colonização na era da hipercomunicação e redes sociais, mas ainda é sobre a desumanização dos colonizados e da pouca importância que damos as suas vidas.
O que acontece na Palestina é ainda a máquina de moer gente que o capitalismo militar-industrial desenhou para o mundo. Não é à toa que a solidariedade que se presta no mundo, salvo poucas pessoas, vêm de trabalhadores (veja os trabalhadores das artes e não os donos dos museus, galerias e boa parte dos grandes artistas), dos movimentos sociais (veja o MST doando alimentos). Não é à toa que o Oscar, que tanto se dedicou a discursos e causas sociais na última década, tenha ficado praticamente em silêncio.
Que o capitalismo (e a ascensão da extrema-direita) tenha sequestrado o imaginário da revolução não é segredo para ninguém. Mas o que deveria estar um pouco mais evidente hoje em dia é que muito do que foi tido como uma grande revolução na última década acabou sendo esse imaginário da revolução que foi vendido. Daí que a gente sabe até que a grande cantora pop da década tem psoríase, mas não sabe o que ela acha da Palestina. Sabemos todas as referências que os filmes da Marvel, mas não sabemos como isso pode influenciar qualquer mudança (só sabemos do Hulk, i.e., Mark Ruffalo).
E obviamente lembramos do Thom York puto porque levantaram umas bandeiras da Palestina uns dias antes do Radiohead se apresentar em Israel; ou do Caetano Veloso e Gilberto Gil que não aceitaram participar do boicote a Israel mesmo com pedidos de Roger Waters e Desmond Tutu.
É impressionante como a linha da colonização é muito clara. Quando se trata de povo colonizado (e um genocídio, porque é essa a palavra mesma), vários dos mais engajados artistas parecem simplesmente desaparecer, como se o racismo que vivemos no Brasil, o extermínio indígena e tudo o mais não fosse totalmente correlato às práticas de colonização.
Daí dizem que a esquerda morreu. Acredito que a esquerda só morre quando a última pessoa desistir de defender a Palestina, pelo menos.
Alguns de repente aparecem pormenorizar certo termo usado, mesmo sendo especialista em racismo, que é algo fundamental ao colonialismo.
(Talvez eu esteja velho, nostálgico, e lembrava que o que moldava o campo progressista era uma intensa solidariedade entre povos e lutas.)
No fim das contas, com muito menos recursos e impactos, são artistas menores e independentes que se colocam e afirmam o tempo todo sua posição ou mesmo produzem coisas como o EP novo da Adrienne Liniker que será todo doado para a causa palestina.
E obviamente lembramos das editoras brasileiras que publicam os livros decoloniais, pós-coloniais, contracoloniais, etc., que não conseguem publicar e nem se posicionar contra o genocídio. Ou falam muito pouco, mesmo quando a autora Adania Shibli tem seu prêmio meio que negado só pelo fato de ser palestina. Ou a editora que vai publicar a Ariella Azoulay, uma das mais contundentes vozes contra a colonização sionista, sem dar nenhuma nota a respeito.
Editoras brasileiras que se posicionaram, que vi: Tabla, Relicário Edições, Alameda, Elefante, Bazar do tempo.
Que notadamente não se posicionam, mesmo publicando o decolinal: N-1, companhia das letras, perspectiva, ubu, cobogó, todavia.
Mate seus ídolos, quando a tal resistência é totalmente um pé de barro. Quando a tal revolução não aparece para denunciar ou tentar impedir um genocídio fica bastante claro que, para boa parte dos atores do norte, o que acontece ao sul, no terceiro mundo, é só um pé de página.
Apoie aqueles que estão colocando em risco suas carreiras, empregos, investimentos para ser contra o genocídio em curso.
É ainda impressionante que Lula tem mais coragem que quase todo mundo, mesmo todo mundo que não tem muito o que perder, a não ser uma bolsa de estudos na Alemanha.
O pós-colonial é só uma forma de ganhar dinheiro ou pode surgir como um pensamento perigoso? Verdadeiramente perigoso? Não era sobre isso que conversámos quando queríamos transformar o mundo?





